Publicado originalmente no Jornal da Unicamp
Estudo mostra como políticas de repressão são adotadas pelos Estados latino-americanos para lidar com a segurança pública
A América Latina é uma das regiões mais violentas do mundo. Essa constatação deriva de um conjunto de fatores que se entrelaçam em um ponto comum: o combate repressivo ao crime organizado e ao narcotráfico. Atentados a céu aberto contra hospitais e universidades com artefatos explosivos e ataques a emissoras de TV culminaram em uma intervenção militar no Equador, no início de 2024. El Salvador, considerado no passado um dos países do mundo mais afetados pelo problema, encontrou no regime de exceção o caminho para a queda nos índices de violência. Em ambos os casos, houve supressão de direitos constitucionais, ações repressivas teoricamente necessárias por conta da criminalidade e a imposição de medidas de claro teor autoritário.
Uma tese, defendida por Gustavo Glodes Blum no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências (IG) sob orientação de Claudete de Castro Silva Vitte, discute as políticas de segurança pública como táticas de administração territorial ao analisar intervenções do Estado em 20 países latino-americanos ao longo das duas últimas décadas. Blum procurou entender o pacto tácito firmado entre esses Estados. “O objetivo foi analisar essas intervenções, levando em conta a construção histórica da ideia de segurança para tentar entender o que os países realizaram em termos de segurança pública com incidência territorial”, explica.
O pesquisador identificou cinco tendências de atuação no caso dos países pesquisados: seguir tratados internacionais que estabeleceram a criminalidade como questão de segurança prioritária; legislar para alterar a função e a forma de agir de suas instituições de segurança interna e externa; intervir no território nacional, principalmente na forma de declaração de estado de exceção; intervir territorialmente em regiões específicas; e intervir nos sistemas carcerários. Em todas estabelece-se uma relação entre Estado, direito e geografia que justifica as políticas de segurança e que limita a democracia.
Vitte lembra que a questão da segurança na América Latina envolve múltiplas dimensões – a começar por sua estrutura histórica. “Desde a chegada dos europeus no século 16, há sociedades extremamente violentas”, lembra. “O crime organizado é uma faceta perversa da violência que influencia fortemente a vida cotidiana. Então, a segurança pública ligada à criminalidade vai ocupando cada vez mais o topo da agenda política, porque a sensação de insegurança nas diferentes sociedades latino-americanas é realmente muito evidente”, complementa. Segundo a professora, os Estados apelam à repressão como solução, mas o que ocorre é a criação de uma insegurança multifatorial. “Esses grupos criminosos vão se infiltrando na nossa sociedade, impactando nossas vidas.”
A orientadora aponta que a tese de Blum representa uma importante contribuição aos estudos de geografia. “Trata-se de um tema difícil, que envolve segurança, grupos criminosos e disponibilidade de dados”, lembra a docente. Para chegar aos resultados, o pesquisador enfrentou, por exemplo, desafios quanto à obtenção de informações oficiais, que em muitos dos países analisados não refletem a realidade. Blum recorreu a documentos de governos, órgãos legislativos, tratados internacionais e imprensa. “A mídia ajuda a contrapor o discurso oficial. Deixa evidente algum detalhe que não estava presente nos dados oficiais”, afirmou.
Segundo o pesquisador, o descrédito das instituições de segurança nos países em foco diz respeito principalmente à impunidade. “Os Estados justificam um maior investimento não nas instituições que deveriam cuidar do caso criminal, mas naquelas ligadas a ações repressivas. Qualquer tipo de manifestação é visto como subversão e tratada de forma a ser desmobilizada”, alerta Blum. O pesquisador cita o exemplo do Chile, em que os carabineiros – o equivalente à polícia militar brasileira – muitas vezes atiravam nos olhos dos manifestantes usando balas de borracha. “Com esse tipo de munição, respeitam-se as regras internacionais sobre não usar armas de fogo. Isso ajuda a entender o tipo de violência política que temos na América Latina”, explica.
O estudo foi desenvolvido no âmbito do Grupo das Relações Internacionais: Estado, Economia, Território e Integração Regional, sob liderança de Vitte. “Tentamos fazer uma interlocução do campo disciplinar da geografia, em uma perspectiva política e econômica, com o campo das relações internacionais”, explica a orientadora. O grupo foca temas relacionados à incidência territorial, tendo a América Latina como recorte, e sua agenda de pesquisa compõe-se de estudos sobre processos de integração regional, infraestrutura, segurança e defesa, desenvolvimento econômico, recursos naturais e energéticos, geopolítica dos alimentos, governança ambiental e urbanização.
Durante seu doutorado, Blum obteve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em dois momentos diferentes. Um deles enquanto realizou seus estudos no IG e outro durante um estágio de seis meses na Universidade de Coimbra, em Portugal, pelo Programa Institucional de Internacionalização (Capes-Print). No país europeu, o pesquisador investigou os riscos geopolíticos, sob supervisão de João Luís Fernandes, professor do Departamento de Geografia e Turismo daquela instituição. Blum segue atuando como pesquisador convidado do Centro de Estudos Interdisciplinares do referido departamento.
Texto: Eliane Fonseca Daré
Fotos: Alex Calixto, arquivo pessoal e reprodução
Edição de imagem: Alex Calixto e Paulo Cavalheri