Em fevereiro de 2001 chegou à reitoria da Unicamp um pedido do então presidente do Senado, Jader Barbalho, para que a Universidade realizasse uma perícia no painel de votação eletrônica da casa legislativa para saber se ele havia sido violado. A suspeita foi levantada após divulgação de uma conversa do senador Antônio Carlos Magalhães (ACM) com o procurador da República Luiz Francisco de Souza. Na conversa, ACM insinuava ter tido acesso às informações sigilosas da votação secreta que cassou o senador Luiz Estevão no ano anterior. O caso provocou uma intensa crise política na República, com desdobramentos que se estenderam por vários meses e grande repercussão nacional. Foi também uma contribuição importante da Unicamp para o aperfeiçoamento das práticas do Poder Legislativo do país.
Quem recebeu o pedido foi Alvaro Penteado Crósta, que é docente do Departamento de Geologia e Recursos Naturais do IG e à época era o chefe de gabinete adjunto da reitoria da Unicamp. A Universidade já era reconhecida na área de TI e tinha se destacado por conta de perícias realizadas pela área de medicina legal.
O então reitor da Unicamp Hermano Tavares pediu que Crósta montasse uma equipe para atender ao pedido. Os docentes José Raimundo de Oliveira, Mario Jino e Marco Aurélio Henriques, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), aceitaram o desafio. Cientes da sensibilidade política do assunto, assim como dos potenciais desdobramentos, solicitaram que a reitoria atuasse na coordenação da perícia. Hermano escolheu Alvaro Crósta para desempenhar esse papel.
De acordo com o então chefe de gabinete adjunto, havia uma comissão interna de sindicância do Senado, formada por técnicos – de carreira de alto nível. A Secretaria de Tecnologia da Informação do Senado (Prodasen) era a responsável pela operação do painel eletrônico. A equipe de docentes da Unicamp foi à casa legislativa e fez cópias dos discos rígidos que compunham o sistema eletrônico de votação. Os discos originais ficaram guardados em um cofre do Senado e um conjunto de cópias ficou operando nos computadores do sistema. Um segundo conjunto de cópias veio para a Unicamp para ser analisado. “Reconstituímos o sistema de votação do Senado em um local reservado da FEEC e, para permitir que a perícia fosse feita sem pressões e também para evitar o intenso assédio da imprensa que o caso suscitou, somente o diretor da faculdade à época sabia sua localização”, conta Crósta.
O grupo da Unicamp trabalhou incessantemente por algumas semanas. “Era um processo minucioso e complexo porque eram vários computadores envolvidos na operação, além de outros componentes que poderiam ter sido usados para violar o sistema, e não fazíamos a menor ideia de que onde poderia ficar um possível vazamento”, detalhe Crósta. Os docentes da Unicamp fizeram uma varredura em todos os arquivos dos computadores que ficavam isolados numa sala, sem acesso a internet e aos quais somente os técnicos do Prodasen tinham acesso. Após pouco mais de 30 dias identificou-se onde estava a “gambiarra”. “Cinco linhas do código (programa que operava o sistema) foram alteradas para que fosse mantida a atribuição do voto de cada senador. No encerramento de cada votação secreta, essa atribuição deveria ser automaticamente apagada pelo programa para que ninguém pudesse ter acesso aos votos individuais. Com essa função desativada pela modificação fraudulenta, a atribuição dos votos foi mantida no sistema e os fraudadores retiraram a lista através de um disquete, que foi posteriormente entregue para o senador José Roberto Arruda, na época líder do governo no Senado, e na sequência para ACM. Nossa análise revelou todos os passos dados pelos fraudadores, que posteriormente apagaram o programa adulterado e colocaram o original de volta. Usamos um software de investigação forense e conseguimos recuperar 80% do conteúdo dos discos rígidos que havia sido apagado, inclusive as linhas adulteradas. Ao final, contamos também com uma dose de sorte, pois a área física do disco onde estava gravada a adulteração ficou preservada”, explica o docente do IG.
Um relatório detalhado de todo o trabalho, com a descrição minuciosa da fraude, foi enviado ao final para Jader Barbalho. De posse dessas informações, a comissão de sindicância do Senado confrontou os técnicos do Prodasen que operavam o sistema de votação e descobriu quem havia participado da fraude. Um desses técnicos era marido da diretora daquele órgão, que tinha ligações políticas com o senador ACM, e que foi quem cooptou os técnicos que operavam diretamente o sistema.
Medo
Durante todo o trabalho a imprensa assediava intensamente os quatros docentes da Unicamp. “Havia também um certo temor no ar. O senador Romeu Tuma, um poderoso ex-diretor da Polícia Federal e aliado muito próximo de ACM, era o corregedor do Senado e se colocou no papel de acompanhar a investigação, tentando trazer com ele técnicos da Polícia Federal. Só que esse não era papel deles, e sim nosso, enquanto uma comissão designada pelo Senado da República. Assim, Tuma agia todo o tempo para tentar nos intimidar. Ele descobriu todos os meus números de telefone na Unicamp, inclusive meu celular e ligava quase todos os dias para saber se tinha alguma novidade. E eu sempre tergiversava”, disse Crósta. “Um dia passei a ele uma informação de pouca importância e à noite exatamente a mesma frase foi repetida por ACM em entrevista ao Jornal Nacional. Eu havia explicado a Tuma que estávamos demorando na análise porque tínhamos de analisar mais de 15 mil arquivos encontrados nos discos rígidos. Esse número era algo perto do que tínhamos encontrado e, na entrevista à Globo na mesma noite, ACM mencionou exatamente esse número e ainda fez um comentário jocoso, tentando desacreditar o nosso trabalho. Constatei então que o que eu falava para o Tuma chegava em linha direta até ACM”, completou.
Alvaro Crósta conta que o grupo também decidiu não conversar a respeito do trabalho por telefone, por receio de estarem sendo clandestinamente grampeados. Todas as conversas eram feitas pessoalmente.
Consequências
O caso do painel eletrônico do Senado culminou com as renúncias dos senadores ACM e José Roberto Arruda, duas das principais figuras políticas do Senado à época, para evitarem a cassação de seus mandatos e a consequente perda de seus direitos políticos. Ambos foram acusados pelo Conselho de Ética de quebra do decoro parlamentar.
No mesmo ano, ocorreu um problema no painel eletrônico de votação da Câmara de Deputados, o que suscitou de imediato a suspeição de fraude, à exemplo do que havia ocorrido no Senado. Aécio Neves, então presidindo aquela casa legislativa, pediu que a Unicamp fizesse análise por conta dos resultados da análise do sistema do Senado. Ao final, concluiu-se que era um problema técnico, sem relação com fraude.
Aposentadoria
A atuação de Alvaro Crósta na crise do painel eletrônico do Senado, que completou 22 anos em março deste ano, foi lembrada pelo diretor do IG, Márcio Cataia, durante a reunião da Congregação do IG ocorrida no dia 15 de março - a última em que o docente atuou como membro titular. Crósta se aposenta após cerca de 40 anos na Unicamp, tendo ocupado importantes cargos na Unidade e na Universidade. O docente é reconhecido internacionalmente nas áreas de sensoriamento remoto, exploração mineral e geologia planetária. Crósta agora segue como professor colaborador do IG, mantendo suas pesquisas e lecionando uma nova disciplina de graduação: Introdução à Geologia Planetária.
Por Eliane Fonseca Daré
Imagens: arquivo pessoal de Crósta, Sergio Lima (Folha Imagem) e Jornal do Senado