Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.
Pesquisa documenta registros da passagem do homem, há cerca de 15 mil anos, pela região do município paulista
Uma tese defendida por Pedro Michelutti Cheliz no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp abordou as conexões entre as atividades humanas e as transformações ocorridas no planeta Terra nos diferentes períodos de ocupação da área de Araraquara (SP), desde sua pré-história até os dias atuais. A tese, defendida no Programa de Pós-graduação em Geografia sob orientação de Francisco Ladeira, identifica as conexões existentes entre a passagem do tempo, a evolução geológica e as técnicas humanas. O trabalho buscou traçar uma relação entre a Terra, a tecnologia e o tempo a fim de discutir a formação territorial.
O trecho inicial da tese, dividida em três partes, apresenta as principais partições locais da Terra e os diferentes mecanismos e tempos de transformação do relevo. A partir dos resultados dessa fase da pesquisa, Cheliz elaborou um modelo para as relações e transformações do relevo e do clima anteriores à presença humana em Araraquara.
Na segunda parte do trabalho, o autor discute os ritmos geológicos do planeta e sua relação com o início das atividades humanas na região de Araraquara. Cheliz realizou escavações em dois sítios arqueológicos nos quais observou uma inserção humana no relevo e no solo que permitiu confirmar a ocorrência de assentamentos muito antigos naquela região. Em um trecho da tese, o autor observa que sua pesquisa abre caminho para novas aborgagens sobre a ocupação da América do Sul. “ Pode ter sido mais rápida do que usualmente se interpreta”, escreveu.
Já na seção final do trabalho, Cheliz descreve as atividades humanas na região depois da chegada dos portugueses ao Brasil. Araraquara é o núcleo de ocupação colonial mais antigo do Oeste Paulista. Pesquisas em arquivos, documentos, livros e teses sobre registros de cenários antigos de ocupação daquela área permitiram contextualizar melhor as atividades humanas pós-cabralinas.
Entre os estudos da área, a teoria mais famosa sobre a ocupação das Américas (chamada de Clovis-first) aponta que esse processo iniciou-se provavelmente há cerca de 13 mil anos. O sudeste e sul do Brasil são usualmente vistos como os setores do continente com a ocupação mais recente. As duas áreas do Brasil com possíveis registros de presença humana anterior a 15 mil anos encontram-se no centro-oeste e no nordeste do país. A aceitação dessa hipótese, de toda forma, divide os estudiosos.
Entretanto artefatos de rocha lascada encontrados na região de Araraquara foram associados, na pesquisa de Cheliz, a partir de testes realizados na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e na Universidade de Washington (Estados Unidos), com datações de cerca de 20 mil a 15 mil anos. A partir de uma técnica denominada fotoluminescência opticamente estimulada, verifica-se a quantidade de radiação gama acumulada em grãos de quartzo. Esse tipo de radiação se dispersa rapidamente quando em contato com a luz solar. Considera-se, então, que o último momento de exposição do grão de quartzo ocorre antes de o objeto passar por um processo de sedimentação.
“Uma parte importante dos vestígios de ocupação humana do período lítico em Araraquara [que se inicia com as primeiras indicações de habitação humana] encontrava-se nas planícies dos grandes rios, que apresentavam recursos mais alinhados com as técnicas de então”, afirma o pesquisador. As mudanças climáticas ocorridas ao longo do tempo mudaram a configuração da paisagem e, consequentemente, dos recursos disponíveis.
“Em resposta às transformações climáticas que ocorreram em um período de tempo recuado, entre 12 mil e 8 mil anos atrás, aconteceram também mudanças significativas nas atividades humanas – as encostas que cercam os planaltos da área passaram a ser mais visadas”, complementa o pesquisador.
Com o início do período histórico colonial, a ocupação passa a ocorrer no topo dos planaltos. “As porções do território que eram mais valorizadas no tempo do caçador-coletor são as que foram ocupadas por último no período contemporâneo porque eram vistas com características menos alinhadas às técnicas de então”, diz Cheliz.
Segundo o pesquisador, a ocupação dessas áreas – antes evitadas – contribuiu para recriar um cenário de transformação do relevo semelhante ao do tempo do caçador-coletor, ainda que sob a influência de um tipo climático diferente: “Enquanto hoje nós vivemos em um clima quente e úmido, esse cenário anterior de mudanças geomorfológicas muito acentuadas, em que havia uma modificação intensa do relevo que levava a população a se adaptar, ocorria em um clima mais seco do que o atual”, destaca.
A tese contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E também serviu-se de parcerias firmadas com a Fundação Araporã, o Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara, o Laboratório de Arqueologia e Pré-História Evolutiva e Experimental (da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o Laboratório de Espectrometria Gama e Luminescência da USP e a Zanettini Arqueologia.
As 1.400 páginas da tese renderam a publicação de 12 artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Outros dois mais já foram submetidos e encontram-se em fase de análise. Segundo Ladeira, a obtenção dos resultados apontados no estudo revelou-se trabalhosa, mas importante para a compreensão da relação entre a ocupação humana e as mudanças ambientais. “Fizemos muitas atividades de campo e várias análises químicas e granulométricas, além das datações”, destaca o docente.
O trabalho, em seu corpo principal, oferece um registro sobre as mudanças nas formas de ocupação da região com cerca de 300 ilustrações entre fotografias e mapas. Outros mais de 300 registros fotográficos, pinturas e imagens de jornais encontrados em arquivos públicos da cidade e que mostram momentos diferentes da paisagem e da vida de Araraquara foram analisados e incorporados ao anexo da tese.
Texto: Eliane Fonseca Daré
Edição de imagem: Alex Calixto
Fotos: arquivo pessoal e Antoninho Perri