Publicado originalmente no Jornal da Unicamp
Tese de doutorado mostra a importância de políticas integradas e prevenção eficaz para mitigar riscos ambientais
O Brasil acompanha, estarrecido, os efeitos das grandes inundações que deixaram regiões de Porto Alegre e de cidades do entorno debaixo d’água em maio de 2024. Na busca por conter os danos físicos e humanos das enchentes, o governo do Rio Grande do Sul anunciou, entre outras medidas, a criação do Comitê Científico de Adaptação e Resiliência Climática. Segundo a administração estadual, o grupo deve ter o apoio de acadêmicos e especialistas para nortear as ações de reconstrução do território gaúcho e a instalação de sistemas de proteção contra desastres.
Por definição, o termo resiliência refere-se à capacidade de superar situações adversas. “Anteriormente, o foco da resiliência ambiental estava na preservação de comunidades tradicionais e de ecossistemas. Porém, com o passar do tempo, ela acabou se tornando algo tecnicista, uma métrica para a governança neoliberal”, avalia Talita Gantus de Oliveira, doutora pela Unicamp. Em sua tese defendida no Instituto de Geociências (IG), a pesquisadora desenvolveu um estudo sobre como o planejamento territorial urbano e o olhar para a vulnerabilidade social interferem na gestão de riscos e na resiliência a desastres naturais. Para isso, analisou o trabalho realizado pela Defesa Civil e demais órgãos da administração municipal de Santos, no litoral paulista, cidade reconhecida por propagar os conceitos da prevenção a riscos por toda a gestão.
Para a geóloga, eventos como os ocorridos no Rio Grande do Sul tendem a ser mais frequentes, o que reforça a importância desses estudos. “Nunca estamos fazendo a gestão dos riscos, mas dos desastres”, sintetiza. A tese foi uma das vencedoras da quarta edição do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog (Pradh) e contou com orientação de Jefferson Picanço, professor do IG, e coorientação de Ivana Jalowitzki, professora do Centro Universitário do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb).
Resiliência e gestão de desastres
O estudo aponta que o conceito de resiliência começou a ser empregado na ecologia nos anos 1970 ainda com foco na preservação como forma de evitar desastres. No entanto, a partir dos anos 1990, a ideia se volta mais à mitigação dos efeitos de desastres que, segundo essa perspectiva, seriam causados apenas por fatores naturais. “Estamos em 2024 e ainda reproduzimos o discurso de que a culpa por um desastre é da chuva ou dos ventos. Desastres não são naturais, mas sim resultado de construções sociais”, adverte Oliveira, que defende a adoção do conceito de “desastres socionaturais”: “O poder público tem a responsabilidade de realizar uma gestão preventiva. Sua omissão e o avanço do capital sobre os territórios urbanos contribuem para o aumento dos desastres”. Segundo os pesquisadores, essa tomada de consciência abre espaço para uma gestão de riscos agregada à preocupação com as condições de vida dos cidadãos, o que também se torna um componente importante da resiliência. “É fundamental reconhecer que a vulnerabilidade a desastres não é um fenômeno natural, mas uma construção social que pode e deve ser mitigada por meio de intervenções adequadas, políticas inclusivas e uma maior consciência sobre a interconexão entre a ação humana e os impactos ambientais”, aponta Jalowitzki.
Com uma população de aproximadamente 420 mil habitantes, Santos é a maior cidade do litoral paulista e a 13ª maior do Estado de São Paulo. As desigualdades presentes no município se refletem na forma como a população ocupa seu território. Boa parte das favelas e comunidades urbanas estão localizadas em morros e encostas da cidade, como o Monte Serrat e os morros do José Menino, Boa Vista e da Penha. Segundo Oliveira, a exposição ao risco associado a desastres cresce à medida que a vulnerabilidade social aumenta.
Entretanto o trabalho desenvolvido pelas autoridades em Santos caracteriza-se por adotar valores identificados pela pesquisadora como uma busca pela resiliência efetiva. A geóloga destaca a integração da Defesa Civil no setor de planejamento de outras secretarias e de outros departamentos, aliando o cuidado com a vulnerabilidade social ao combate a desastres. Isso fez com que o município investisse mais em prevenção, postura que vai na contramão do praticado por outras esferas de governo, que focam mais a resposta aos desastres. Dados do Tribunal de Contas da União (TCU) levantados pela pesquisadora mostram que, entre 2012 e 2023, a cidade investiu R$ 57,4 milhões em prevenção e R$ 15,5 milhões em ações de recuperação após desastres. No mesmo período, o governo federal investiu, em todo o país, R$ 7,8 bilhões em prevenção e quase o dobro do valor, R$ 15,2 bilhões, em recuperação.
Outro destaque da governança santista é a inclusão dos moradores nas ações, ampliando a percepção social dos riscos, o que se reflete na resiliência da população. Junto à comunidade do Monte Serrat, por exemplo, a Secretaria de Meio Ambiente da cidade mapeou soluções para conter o risco de deslizamentos que fossem baseadas na própria natureza do local. “São iniciativas que vão além da resposta aos riscos, pensando o urbanismo como uma forma de prevenção”, lembra a pesquisadora.
Segundo Oliveira, o reconhecimento do seu trabalho de doutorado – obtido por meio do Pradh – é multifacetado. Para a pesquisadora, muitos geólogos ainda veem seu campo de estudo como algo apartado dos fatores sociais. “Esse é um marco simbólico na geologia para podermos entendê-la como instrumento que integra a discussão social”, pontua a geóloga, que também vê na conquista uma oportunidade de aperfeiçoar a formação dos profissionais da área. “Não temos uma base curricular que nos forme para os problemas contemporâneos.”
Os resultados do estudo também vão ao encontro da necessidade de o país estar preparado para os desastres ambientais, que devem se tornar mais frequentes e intensos. “A política de prevenção de riscos deve ser uma política de Estado, não apenas de um governo. São desafios muito grandes que não cabem em ajustes fiscais”, alerta Picanço. Segundo o professor, a pesquisa geológica deve avançar sob uma perspectiva de integração com as demais ciências. “Não faz sentido uma geologia que não olhe para as pessoas.”
Texto de Felipe Mateus
Fotos Antonio Scarpinetti e arquivo pessoal