No início de 2019, a Organização Mundial da Saúde já considerava a hesitação vacinal uma das maiores ameaças à saúde global. Com a pandemia do Coronavírus e com a fase final de testes de vacinas, a circulação de vídeos com desinformação no YouTube e através de redes sociais como o WhatsApp tem preocupado ainda mais as autoridades mundiais. Um artigo publicado no final de outubro na revista Frontiers revela que, apesar de declarações de comprometimento do YouTube em relação ao combate a desinformações perigosas, aquelas relacionadas a vacinas continuam sendo disseminadas em vídeos em português, gerando lucro para produtores de conteúdo e para a própria plataforma. Devido aos riscos que esse problema oferece para a aceitação de uma futura vacina contra a Covid-19 e, consequentemente, para o controle da pandemia, o estudo gerou repercussão na revista Science. O artigo faz parte da pesquisa de Dayane Machado, aluna de doutorado do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp, orientada pela docente Leda Gitahy. Também é assinado por Alexandre Fioravante de Siqueira, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos.
De acordo com Dayane, o estudo visava verificar se o YouTube estaria combatendo as desinformações sobre vacinas conforme vinha declarando nos últimos meses. A pós-graduanda pesquisa o movimento antivacinação em seu doutorado e decidiu analisar essa rede por dois motivos: essa é uma plataforma que ainda recebe pouca atenção por parte de pesquisadores do campo de estudos da desinformação; e a empresa tem sido alvo de uma série de escândalos devido ao seu sistema de recomendação, que privilegia conteúdos extremos e negacionistas, como materiais de extrema direita, terraplanismo, teorias da conspiração, dentre outros. Dayane, Leda e Alexandre desenvolveram uma metodologia que tentasse simular o comportamento de um usuário normal navegando na plataforma para identificar o que o público possivelmente encontraria sobre o tema. Para especificar quais desses vídeos continham desinformação, foram criadas seis categorias principais de análise: segurança, efetividade, saúde alternativa, moralidade, teorias da conspiração e outros (como liberdade de escolha e apelo emocional).
A amostra inicial continha 158 vídeos. Desse total, os estudiosos identificaram 52 vídeos em 20 canais com desinformação sobre vacinas. A coleta dos dados foi feita por Alexandre, que integra o Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais (EDReS) da Unicamp, do qual a professora Leda é uma das coordenadoras. “Os vídeos foram salvos em um banco de dados, pois alguns deles podem ser derrubados da rede por conta de seu conteúdo. Analisamos em cada um os seis critérios dos vídeos e das propagandas neles inseridas, os chamados anunciantes”, conta Leda. O resultado do estudo sugere que o YouTube não tem feito o suficiente para combater a circulação de desinformações sobre vacinas e de certa forma incentiva a produção desse tipo de material através da monetização de conteúdo. “Apesar da plataforma já ter se posicionado sobre o combate a conteúdos danosos, vídeos com desinformações sobre vacinas continuam sendo divulgados em português porque há interesses em não retirá-los”, afirma a docente. Leda Gitahy lembra ainda que o modelo de negócio das bigtechs é movido por cliques e por propagandas. Um relatório recente do Centro de Combate ao Ódio Digital (CCDH) estima, por exemplo, que Facebook, Instagram, Twitter e YouTube lucram até 1 bilhão de dólares por ano graças ao movimento antivacinação.
De acordo com Dayane, que é a primeira autora do artigo, “as principais desinformações encontradas na análise coincidem com as mais populares entre as comunidades de oposição a vacinas: afirmações de que os imunizantes contêm ingredientes perigosos; defesa da liberdade de escolha e incentivo à ‘pesquisa independente’; promoção de serviços de saúde alternativa; o mito de que vacinas causam doenças; teorias da conspiração e a alegação de que causam efeitos colaterais severos”. O artigo revela também uma parceria entre os canais que promovem serviços de saúde alternativa. “Essa colaboração ocorre através da reprodução de vídeos de canais associados ou através do apoio a criadores de conteúdo que fazem parte da rede. Os canais espalham desconfiança em relação a instituições tradicionais, como organizações de saúde pública, médicos, cientistas e imprensa para promover a si mesmos como fontes confiáveis e lucrar com a venda de serviços de saúde alternativa”, destaca Dayane. Esses canais usam diferentes estratégias financeiras para obterem ganhos, como a venda de cursos, livros e tratamentos alternativos, solicitando doações por meio de plataformas de arrecadação e depósitos em contas bancárias e até mesmo de grandes empresas, por meio de anúncios no YouTube.
Na análise, os pesquisadores identificaram anúncios de 39 marcas em 13 vídeos. Entre elas, estão marcas globais como Mobil, Kia, Fiat, Philips, Spotify, Eucerin (Beiersdorf) e Buscopan (Boehringer Ingelheim), além de anúncios dos governos da Índia e do Japão. “Apesar de o Programa de Parceiros do YouTube — serviço que permite a monetização de conteúdo — ser uma fonte de renda importante, os canais da amostra usam estratégias econômicas variadas para garantir o lucro mesmo que seu conteúdo seja identificado como impróprio e desmonetizado pela plataforma”, diz Dayane. Segundo Leda, “apesar de o YouTube dizer que controla o conteúdo, em português isso não ocorre porque o moderador algorítmico não identifica quando os conteúdos de desinformação adaptam o tema. As grafias são alteradas propositalmente para não passarem pelo filtro da rede, que é automática”.
Pandemia
“A circulação de desinformações que atacam a segurança e a eficácia das vacinas e questionam a legitimidade das instituições oficiais associadas a elas é extremamente preocupante nesse contexto de pandemia. E é especialmente problemático que os produtores de conteúdo associados a esse tipo de material estejam sendo premiados e incentivados a criar esse tipo de vídeo (via sistema de monetização do próprio YouTube e através de outros recursos que esses produtores vêm adotando para assegurar os lucros)”, preocupa-se Dayane. Segundo a aluna do DPCT/IG, “há estudos mostrando que a exposição excessiva a desinformações — e teorias da conspiração — sobre vacinas pode influenciar, por exemplo, na tomada de decisão das pessoas de não se vacinarem. Então, é possível dizer que essa crise de desinformação pode interferir na percepção da população em relação a uma vacina contra Covid-19 e até no imaginário das vacinas de forma geral”. Não há como prever, no entanto, os níveis de aceitação quando a vacina contra a Covid-19 estiver disponível. “É por isso que uma campanha que buscasse compreender e responder às ansiedades e dúvidas da população sobre esse tema seria essencial. É o tipo de estratégia que já deveria estar sendo colocada em prática pelos órgãos oficiais há alguns meses”, diz a pós-graduanda.
Com a pandemia, os movimentos antivacinação aproveitaram a onda de ansiedade e de incerteza que a população vive para alcançar públicos diversos. Com o WhatsApp, especialmente, a difusão de vídeos com conteúdos de desinformação passou a ser muita mais rápida. “Essa dinâmica de disseminação já era esperada entre os estudiosos da área. Já a postura mais recente do presidente da República de mencionar supostas medidas de obrigatoriedade relacionadas à vacinação contra a Covid-19 parece parte de uma estratégia para manter a confusão e mais uma vez espalhar desconfiança em relação às instituições e aos processos - aqueles relacionados ao desenvolvimento de vacinas e à produção científica de forma geral. Com isso, ele ao mesmo tempo sinaliza uma certa validação das comunidades que já se opõem a vacinas, ajuda a criar polêmicas em relação a questões secundárias e consegue atacar atores que vem sendo considerados inimigos do governo federal”, destaca Dayane.
De acordo com a pós-graduanda, o próximo passo da pesquisa é investigar o papel do YouTube na disseminação de desinformações sobre a Covid-19. “Queremos entender como e se as mudanças nas políticas de uso da plataforma vêm sendo implementadas no Brasil, além de identificar quem está por trás desse tipo de conteúdo”, diz.
Science
Para Leda Gitahy, “o artigo publicado na Frontiers é original, foi bem redigido e o conteúdo é de fronteira. Diversos outros trabalhos com as mesmas características são feitos no DPCT, mas não têm o mesmo impacto num momento como esse. Tudo isso gerou o interesse da Science”. A divulgação do trabalho na revista obrigou a um posicionamento do YouTube sobre o artigo. “Em geral, grande parte dos trabalhos não recebe muita atenção da empresa. Então, esse aspecto já foi bastante satisfatório para o nosso grupo. Outro ponto interessante é que o trabalho acaba sendo divulgado para públicos mais diversos e isso traz benefícios em termos de divulgação científica e também em termos de colaboração com outras instituições e países”, aponta Dayane. O estudo da Unicamp faz parte, justamente, de um conjunto de artigos publicados na Frontier sobre os novos rumos na comunicação científica e ambiental.
A review publicada na Science já começou a ser divulgada em outras partes do mundo, como é possível identificar nas notícias abaixo:
Marak Video Aktivaksin di YouTube - Indonésia.
YouTube vẫn để lọt các video chống tiêm vaccine - Vietnã.
Texto: Eliane Fonseca Daré
Fotos: arquivo pessoal e reprodução Fixabay
Edição de imagem: Renan Garcia
Leia a matéria no Jornal da Unicamp: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2020/11/16/pesquisa-sugere-que-youtube-contribui-para-desconfianca-sobre-vacinas