Relembre parte da história do IG em matéria de Clayton Levy publicada em 2006 no Jornal da Unicamp.
A ‘armadilha’ que trouxe as Geociências para a nova era
Severo Gomes, ministro da Indústria e Comércio do governo Geisel, era o convidado de honra. Zeferino Vaz, com um plano na cabeça, o anfitrião. E Amílcar Herrera, respeitado geólogo argentino e uma referência do pensamento latino-americano sobre ciência, tecnologia e sociedade, o personagem do dia. Na platéia, estudantes, professores e pesquisadores. Organizado pela Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec) da Unicamp, o seminário C&T e Estratégias para a Independência, realizado no início de 1977, tinha a forma e o conteúdo de um evento acadêmico, mas foi muito além disso. Constituiu-se, na verdade, de uma “armadilha”.
Amílcar Herrera inicia projeto do Instituto com ajuda de apenas três professores
A criação de um Instituto de Geociências (IG) constava dos planos de Zeferino desde a fundação da Unicamp. Mas dez anos já haviam se passado e o projeto não decolara. Não que faltassem cérebros. Na época, já iam a pleno vapor os institutos de geociências da Universidade de São Paulo (USP), na Capital, e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro. Mas Zeferino não queria uma cópia. Ele estava em busca de um novo modelo. E Herrera, por suas idéias progressistas aliadas à lucidez intelectual, era o homem capaz de preencher essa lacuna.
Durante o evento, o que era expectativa tornou-se uma certeza. Transbordando jovialidade do alto de seus 60 anos, Herrera impressionou a platéia. “Há na América Latina competência científica suficiente para superar os obstáculos ao desenvolvimento, mas falta demanda social por P&D, o que deixa nossa capacidade subutilizada”, discursou. “Trata-se de um obstáculo estrutural, histórica e politicamente determinado por nossa condição periférica, cuja superação depende de um projeto nacional apoiado por todos os segmentos da sociedade”.
Ao final, Herrera havia caído nas graças de Zeferino. Só faltava fazer o convite, do qual o argentino sequer desconfiava. Um dos mais satisfeitos era o pesquisador gaúcho Renato Dagnino, que havia colaborado na criação da Codetec, primeira incubadora de empresas do Brasil. Foi dele a idéia de trazer o geólogo para falar no seminário. Dagnino, que nos anos seguintes concluiria o doutorado no Instituto de Economia (IE), seria, ao lado de Herrera, uma das peças-chave na estruturação do Instituto de Geociências.
Após o seminário, Severo Gomes ofereceu uma recepção na sede de sua fazenda, que ficava próximo a Campinas. Entre os convidados, alguns medalhões do mundo acadêmico: Fernando Henrique Cardoso, Maria da Conceição Tavares e Carlos Lessa, entre outros. Exceto por um imprevisto – o Ford Galaxie que transportava Herrera atolou no caminho e precisou ser resgatado por um trator – o encontro político-científico-social saiu como Zeferino esperava. A certa altura, o reitor dirigiu-se ao geólogo e deu o “bote”. Com sua postura de gentleman, Herrera agradeceu, mas alegou que tinha compromissos inadiáveis e só poderia assumir dali a um ano. “Eu espero”, disse Zeferino. Até o fim da festa estaria tudo acertado.
O ano de 1977 mal começava e já reservava bruscas mudanças para os três personagens que marcam o primeiro capítulo da história do IG. Em pouco tempo, Severo Gomes, publicamente identificado com a abertura política e com a mudança do modelo econômico vigente, deixaria o cargo de ministro; Zeferino, prestes a tornar-se um septuagenário, caminhava a contragosto para a aposentadoria compulsória; e Herrera, exilado na Inglaterra por força da ditadura argentina, assumiria o desafio de estruturar o Instituto de Geociências da Unicamp.
Cenário de crise – Em setembro de 1979 Herrera aportava em Campinas para cumprir o compromisso assumido. Àquela altura, porém, o cenário era outro. Em 1978, Zeferino havia deixado o posto de reitor. Em seu lugar assumira o ex-diretor da faculdade de Odontologia, Plínio Alves de Moraes, cujo mandato seria assinalado por uma grave crise institucional. No plano externo, chegava ao fim a euforia do “milagre econômico” e começava a agonia da hiperinflação, que marcaria toda a década seguinte. Em conseqüência do quadro adverso no plano financeiro, houve um certo preterimento do projeto.
De 1979 a 1981, o IG contava apenas com Herrera e três outros professores: Dagnino, Celso Pinto Ferraz e Bernardino Figueiredo. Caberia ao quarteto a tarefa de implantar as Geociências na Unicamp. Não foi uma tarefa fácil. Os quatro sabiam exatamente por onde começar, mas esbarravam na escassez de recursos. Mais jovens, Bernardino, Dagnino e Ferraz não conseguiam conter certa ansiedade. Herrera, porém, mais vivido e rodado, jamais agia de forma intempestiva.
Diante da equipe reduzida, o pesquisador argentino ensinava a importância da pluralidade. Adepto da “não-violência”, fazia de tudo para não bater de frente. E, como um Mahatma Gandhi da ciência, trabalhava os obstáculos sem cultivar adversários. Pacientemente foi sinalizando os valores que deveriam pautar as ações do Instituto. E que, diante das resistências, sempre havia um jeito – o seu – de “não engolir sapos sem ter que matá-los a pauladas”.
Novos tempos – A partir de 1982, com a posse do reitor José Aristodemo Pinotti, a estruturação do IG ganha fôlego novo. Já em 1983 tem início a Pós-Graduação. Começar as atividades pela pesquisa era algo inédito nas Geociências do país, mas Herrera tinha a explicação na ponta da língua: “O Brasil já tem um número razoável de escolas de Geologia, mas um incipiente desenvolvimento em certas áreas de pesquisa”. E arrematava: “A Pós-Graduação, nesse momento, é mais importante”.
Ao começar pela Pós, Herrera não inovou apenas na suposta ordem natural das coisas. A proposta do curso também trazia mudanças quanto ao foco e alcance das pesquisas. Foram definidas três áreas iniciais: metalogênese, economia mineral e tecnologia e meio ambiente. No campo da metalogênese, por exemplo, adotou-se uma postura mais abrangente. Em vez de estudar as jazidas a partir da análise individual dos depósitos minerais, como se fazia convencionalmente, a pesquisa passou a focalizar o conjunto dos depósitos e a relação entre as diferentes jazidas. As outras duas áreas eram inéditas.
Estes três segmentos iniciais formariam a base para que até 1985, dentro de um amplo processo de institucionalização, fossem consolidados os quatro departamentos do instituto: Política Científica e Tecnológica (DPCT); Metalogênese e Geoquímica (DMG); Administração e Política de Recursos Minerais (DAPRN); e Geociências Aplicada ao Ensino (DGAE). Recentemente, criou-se o Departamento de Geografia (DGEO), enquanto os departamentos de Metalogênese e Administração e Política de Recursos Minerais foram fundidos, resultando no Departamento de Geologia e Recursos Minerais (DGRN).
O DPCT dedica grande ênfase às atividades de pesquisa no campo do desenvolvimento científico e tecnológico e da inovação, norteado pela visão de que a dinâmica da Ciência e Tecnologia é um processo social e, como tal, condicionado por fatores de natureza política, econômica e cultural. Já o DGAE tem como meta a produção e correspondente difusão do conhecimento gerado interdisciplinarmente pelas grandes áreas temáticas das Geociências, da Educação e da História. O DGEO, por sua vez, tem como metas habilitar o geógrafo a desempenhar suas funções, enquanto o DGRN tem como foco os recursos naturais e suas condicionantes geológicas, sociais, políticas, legais, econômicas e ambientais.
Posteridade – Em 1989, dez anos depois de iniciar o trabalho de implantação, Herrera encerraria seu mandato como primeiro diretor do IG. Contava, então, com 72 anos. Em seu lugar, assumiria Bernardino Figueiredo, fiel escudeiro das primeiras horas, que dirigiria a unidade até 1991. Na linha sucessória, ainda ocupariam a direção, pela ordem, os professores Celso Pinto Ferraz, Newton Pereira, Arquimedes Perez Filho e o atual, Alvaro Crosta, que assumiu em 2005. Falecido em setembro de 1993, Herrera não teve tempo de ver a implantação da graduação, que só ocorreria em 1998, com o curso de Ciências da Terra, nas modalidades Geologia e Geografia, compreendendo as opções para bacharelado em ambas áreas e licenciatura em Geografia. O currículo já incorporava atualizações coerentes com as tendências do século 21.
Atualmente, o IG alcançou autonomia de vôo, ganhou reconhecimento nacional e internacional por sua elevada produção científica (acumula 521 dissertações de mestrado e 111 teses de doutorado) e se consolidou como importante núcleo gerador de conhecimento para formulação de políticas voltadas à inovação tecnológica. Ainda hoje, porém, é difícil dissociar o Instituto da imagem de seu criador. O próprio Herrera tentou, mas não conseguiu. “Eu desejaria, um dia, acordar havendo me esquecido do meu nome”, confessou certa vez ao escritor e amigo Ruben Alves. “Não entendi”, devolveu Ruben. Aí ele explicou: “Quando eu me levanto e sei que meu nome é Amílcar Herrera, sei também tudo o que se espera de mim. O meu nome diz o que devo ser, o que devo pensar, o que devo falar. Meu nome é uma gaiola em que estou preso. Mas se, ao acordar, eu tiver me esquecido do meu nome, terei me esquecido também de tudo que se espera de mim. Se nada se espera de mim estou livre para ser aquilo que nunca fui. Começarei a viver minha vida a partir de mim mesmo e não a partir do nome que me deram e pelo qual sou conhecido”.