Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.
O Maranhão tem sido foco de um conflito territorial que se aprofunda com o avanço da fronteira agrícola. De 2018 a 2022, ocorreram no Estado mais de 900 conflitos agrários diretos e, na maioria dos casos, os trabalhadores acabaram expulsos, violentamente, de suas terras. Como consequência, a marginalização e a vulnerabilidade econômica e social a que são expostos fazem dessas pessoas vítimas fáceis da chamada escravidão moderna. O agronegócio, que vende a ideia da modernização da agricultura e que ganhou espaço na economia nacional nas últimas cinco décadas, é um dos principais atores desse processo de precarização da força de trabalho, contribuindo para a formação de uma extensa rede migratória nacional de mão de obra escrava.
Tais constatações fazem parte da dissertação de Matheus Sousa Barros, defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. Na pesquisa, Barros buscou entender o que leva o trabalhador maranhense ao deslocamento e à escravidão dentro e fora do Estado.
De acordo com o geógrafo, quando o trabalhador sai do campo, migra geralmente para pequenas cidades, aonde chega em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica. “Trata-se de pessoas que infelizmente não concluíram a sua formação escolar. Como não têm formação adequada, acabam se submetendo a situações de trabalho degradantes. E, aí, uma das formas que acabam encontrando para ter acesso a algum tipo de trabalho é em ocupações da economia do agronegócio, geralmente naquelas atividades que não exigem um grau de escolaridade muito alta”, pontua.
Barros retrata o conflito territorial no Maranhão a partir de relatos obtidos ao longo de seu estudo. “É possível descrever a brutalidade por meio dos tratores, das motosserras e das chamas que surgem como uma forma de apagamento de diversas comunidades que abrigam, além de uma grande diversidade socioambiental, a riqueza em culturas e saberes produzidos historicamente pelo povo quilombola”, aponta trecho da dissertação.
De acordo com o orientador do mestrado, o docente Vicente Eudes Lemos Alves, “tais conflitos vêm ocorrendo há décadas em função da grilagem de terras e se relacionam com o agronegócio”. O Estado integra o Matopiba, região de planejamento delimitada pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégico da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Territorial (Embrapa Territorial). O Matopida abrange áreas do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia, todas no Cerrado. Apesar de ter um solo mais pobre, o bioma favorece a expansão do agronegócio e de suas monoculturas, como as de soja, algodão e eucalipto. “Essa modernização provocou a expulsão desse trabalhador das suas áreas de produção e de vida. Essas eram áreas de uso comum, áreas de povoados, de pequenas comunidades agrícolas ou extrativistas”, explica Alves.
Com o reconhecimento da figura do trabalho escravo em 1995, o problema ganhou visibilidade. Não é difícil achar notícias sobre a libertação de pessoas encontradas em situação de trabalho escravo contemporâneo, principalmente em Estados como Maranhão, Minas Gerais, Pará, Goiás, São Paulo, Bahia e Mato Grosso. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e coordenado por uma equipe de auditores fiscais do trabalho, passou a atuar em cooperação com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Barros identificou que, de 2012 a 2022, Minas Gerais se destacou como o Estado com o maior número de trabalhadores resgatados – cerca de 4.200. Desse total, por volta de mil foram resgatados no ano de 2021, conforme dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O município maranhense de Codó é o que mais “exporta” mão de obra escrava nacional – cerca de 30% dos trabalhadores resgatados são oriundos dessa cidade.
Matheus Sousa Barros (à esq.), autor da pesquisa, e Vicente Eudes Lemos Alves, orientador: escravidão é vista como vantajosa
Mas como esses trabalhadores maranhenses se deslocam para outros Estados? Por meio de redes migratórias, muitas alimentadas pelo chamado “engodo” – falsas promessas de boa remuneração feitas pelo “gato”, pessoa de confiança da própria comunidade que facilita a arregimentação do trabalhador. “As falsas promessas sobre bons empregos e ótimos salários enchem os olhos das pessoas com baixa escolaridade, de baixa renda e com oportunidades escassas de inserção no mercado de trabalho”, aponta o pesquisador em sua dissertação. O “gato” tem ligação com agências de viagens. Em Codó, por exemplo, há diversas dessas empresas oferecendo viagens ao centro-sul do país. Esses estabelecimentos servem como ponto inicial de intermediação para o recrutamento de trabalhadores. “O aliciador consegue um ônibus clandestino por meio de uma agência de viagem para transportar esse trabalhador para outro Estado. Assim, vai se formando toda essa rede complexa de aliciamento”, explica Barros.
Chegando ao seu local de trabalho, a pessoa sofre ameaças, dorme em locais insalubres e tem seus direitos desrespeitados. Sujeita-se a mecanismos de endividamento artificial, como servidão por dívida e dívida induzida, à retenção ou ao não pagamento de salários e à retenção de documentos ou de pertences, estratégias que, associadas a um regime de controle rígido e de repressão violenta, impedem que a pessoa saia do local, submetendo-se então ao trabalho forçado. Percebe-se assim que, apesar dos novos rótulos e das novas formas que adquiriu, a escravidão perpetua-se. Segundo o pesquisador, o que diferencia o trabalho escravo do passado do trabalho escravo do presente “é que hoje não se tem mais um tronco”. “Não adianta falar que o trabalho é análogo à escravidão. Essa é uma terminologia que minimiza a existência do trabalho escravo e impede, muitas vezes, que seja reconhecido como tal pela própria vítima.”
Para Alves, os grupos econômicos envolvidos nessas redes veem a escravização como uma vantagem. “Falta um processo de punição efetiva aos grandes grupos econômicos envolvidos nessa rede migratória de aliciamento, grupos esses que, apesar de estarem inseridos em listas sujas do Ministério do Trabalho e Emprego, continuam sendo alvos de denúncias sobre trabalho escravo”, diz. Além disso, a violência contra fiscais do trabalho e membros da CPT, que buscam expor casos do tipo e identificar locais onde há tais conflitos, são um fator importante nesse contexto. Um exemplo disso foi a emboscada fatal que resultou na morte, há 20 anos, de três auditores fiscais e um motorista da Delegacia Regional do Trabalho de Minas Gerais (hoje Superintendência). O grupo viajava para apurar denúncias de trabalho escravo em Unaí (MG) quando foi emboscado. “Infelizmente ainda existem milhares de trabalhadores que estão em situação de trabalho escravo e aos quais o MTE e a Comissão Pastoral da Terra ainda não conseguiram chegar”, finaliza Barros.
Por Eliane da Fonseca Daré
Imagens: Wilson Dias (Agência Brasil), arquivo pessoal e Antoninho Perri
Edição de imagem: Alex Calixto e Paulo Cavalheri